quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Perdido de Volta - Miguel Gullander [trechos]



Eu não estou louco, apenas sou um viajante - e os aventureiros são imprevisíveis: num momento estão aqui, logo agora, estão ali.
O meu lugar preferido para viajar é até o outro lado do universo.
15

Queria estar em todo lado e com toda a gente ao mesmo tempo, - partilhando e bebendo do eterno momento que agora se desenrola, - podendo ter certeza, garantir a possibilidade de me cruzar com aquela única pessoa que me soubesse falar àquela alma que os meus amigos não acreditam existir - neste mar de gente, tempo, espaço, anonimato, esquinas -, queria encontrar, viver, aquele instante
19

Esta é uma das coisas boas da Escandinávia: o não-existente ouro nazi permite-nos ser tolerantes, multiculturais, e trazer uma quantidade de coisas étnicas e interessantes, de outros lugares, para bêbados desempregados e solitários, como eu, entreterem as eternas noites do omnipresente inverno.
O inverno, compreenda-se, não é uma estação, é uma condição. Mental, mesmo.
20-21

Parecendo um pequeno paraíso encenado, um palco, esta praça onde nos encontramos está pronta para ser filmada e contar uma trágica história de amor e pirataria, despedidas e reencontros, - noutros tempos, em que as mulheres ainda achavam que, por alguns homens, valia a pena esperar uma vida inteira.
25

“Eh, moço, cuidado!”
“Parece besunto” explica entusiasmado o albino.
“Porquê este nome para a Hiace” pergunto eu, já a tirar o meu caderno do bolso de trás da Levi’s.
Ele olha desconfiado, mas interessado, o caderno.
“Gosto de me lembrar das histórias que aprendo com as pessoas” esclareço.
30

“Por mais falta de cumprimento de horário, de rota, - por mais desconhecido que seja o caminho - por mais desnorteado que pareça ser o destino, por mais perdido que se esteja, esta carrinha acaba sempre por ir aonde a necessidade exige - acaba sempre por passar por ir aonde a necessidade exige - acaba sempre por passar onde é preciso. Recolhe quem deve recolher e até dá, por vezes, uma boleia - e, mesmo que ande perdida na noite, na chuva nos caminhos sem vivalma, - perdida, ela acaba sempre por regressar de volta onde pertence, a casa.”
32-33

Cada um de nós está no caminho de retorno, mesmo que disso não se dê conta. Pode andar perdido… mas é sempre -
Perdido de volta.
33

Para quem gosta de telenovelas, esto que vou contar não interessa para nada, pois, para começar, é uma história verdadeira, cujo enredo é simples e bruto demais para caber em 120 episódios bem esticados, bem narrados, falsificados - e nestas curtas páginas não vai haver nem final, nem solução, nem clímax. Consolem-se os que sabem de estruturas narrativas, porque não haverá artifícios trágicos, fáceis, estilo deus ex-machina a entrar cena adentro, palco abaixo, para resolver a confusão toda - o enredo da nossa vida - a para o qual eu não consigo descobrir desenlace. Isso virá depois, para quem souber esperar, tal como eu próprio estou à espera. Vai ser como a própria vida, e esse é o seu único truque dramático: ter acontecido mesmo.
35

Nas agências (sejam elas governamentais ou não, vai dar ao mesmo), para que elas funcionem, e prevejam ao máximo o imprevisível, é necessário ter todo tipo de amostras humanas, todo tipo de pessoas pertencentes a todos os tipos de versões da realidade - por isso, por cada fez profetas do tsunami e do efeito de estufa, daqueles que dizem que os níveis de CO2 vão elevar os mares 28 metros, eu conseguia encontrar vinte gajos que demonstravam o oposto. Portanto, enquanto os ambientalistas, comedores-de-saladas, se arrastam nos seus carrinhos-de-choque, com um motor eléctrico e um motor a gasolina (tendo, faça-se a aritmética, gasto o dobro dos recursos industriais para produzir tamagoshis-a-rodas, estilo Toyota Prius) - enquanto eles poluem com a sua gasolina verde, eu rasgo os semáforos, turbo a esguichar napalm pelo cu-de-escape, até que a catástrofe chegue. E nada farei para a impedir. Pelo contrário.
Numa parede junto à biblioteca de Oeiras está escrito: “Queremos um tsunami!” Eu também queria um. Eu queria que uma baleia gigante entrasse por este mundo adentro, este meu mundo - e me comesse vivo.
37

“Existe uma queda, em círculo, para dentro dum espaço fechado, quando a planta te entra no corpo. O ponto de fuga, aquele sítio inexistente, para onde és atirado, é uma cela cujas paredes estão entorpecidas, anestesiadas - e como não as sentes, não as vendo, iludido pensas não existirem.”
45

Connosco sentados à sua volta, tirava notas no seu computador portátil. Odiava tocar em canetas ou papel. Tudo digital, abstracto, frio, como ele próprio.
“Então aí nessa terra…” e dirigia-se a um dos agentes de um dos países onde, em breve, o banco iria fazer propostas para a Educação. “Eles são religiosos?... Ah, não? Então vou dizer-lhes que a Educação contribui para um espírito laico da sociedade…” escrevia no computador.
“E no seu país? O que viu?” apontava para mim. “...Ah, ok, são religiosos, então vou dizer que a Educação contribui para um aprofundamento dos valores universais e tradicionais. Vou dizer que qualquer cultura, tendo como pano de fundo uma estrutura ética, deve dar atenção à sua organização educativa e… E as gajas de lá? É minimamente liberal?... Está bem” e escrevia mais. “Vou acrescentar assim ao de leve que, sim, a Educação contribui para uma maior consciência social, sexual. Contribui para a emancipação profissional, sexual, blá blá, o que nós bem queremos é que façam menos bebés e passem menos sida.
51

Porque para se falar de ser mulher tem de ser uma. Enquanto que para se falar de homens é simples: basta simplificar.
57

piropo - 58

Mais duro do que o dos homens, o nosso caminho, como mulheres, exige mais realização - um homem pode ser considerado homem apesar de nada ter feito além disso mesmo, de ser homem. O que não quer dizer muito. Mas uma mulher, para se sentir mulher, precisa de muito, precisa se mover em muitas coordenadas e dimensões diferentes - da orgânica à social. E a sua guerra, a sua luta, como todo o reino do mundo natural o demonstra, é implacável. Tudo passa por nós, mulheres: não há ser humano que não tenha, literalmente, passado pelo útero e alma duma mulher. Somos leoas quando mães, somos louva-deus quando amantes, somos viúvas-negras quando despeitadas.
59

“Inteligência!” gritam prontamente os alunos.
“Exactamente!” exulta ele. “Inteligência, etimologicamente provém de suas palavras latinas combinadas: ‘inter’ mais ‘legere’. Entre mais ‘ler’. Ler-entre. Ler entre o quê?!”
“Ler entre as linhas!” rejubila perante a congregação o professor. “Para se descobrir a verdade é preciso ler nas entrelinhas, para lá do visível, do explícito. Porque a verdade nunca pode ser dita, nem a beleza mostrada: ela é eminentemente subjectiva - não está no objecto, mas sim no próprio sujeito. É, portanto, preciso captar o invisível, o que não está escrito - o implícito. A inteligência é ler, apreender intuitivamente, isso que está nas entrelinhas, entre as letrinhas pretas. É essa a grandeza da poesia: o que de vosso descobrem, para lá do dado pelo escritor. A beleza encontrada é vossa - o invisível para lá das palavras. O texto, a palavra, é apenas como um dedo que aponta a lua. Esse dedo nunca é a própria lua. E se vocês forem para lá, olhando para além, descobrem nas entrelinhas o que não pode ser dito por palavras. E esse milagre, essa beleza é só vossa, são vocês mesmos - esse milagre, essa beleza…”
66-67

“Toda a gente fecha os olhos e ao som das diferentes músicas que vou tocar, dançam com a caneta pelo papel. Não se inibam, sintam-se livres, pois vocês são livres!” e falando de liberdade o professor já estava a predeterminar o curso dos eventos.
67

E depois ele fá-los misturarem as frases, combiná-las do modo mais improvável e usá-las como a primeira linha dum novo poema: “Um cálice de Deus que me permite sonhar com os teus passos”; “A máscara negra da Deusa Raiva”; “O espelho, sempre a dúvida: eu ou ele?”; “Depois do sabor, a morte não é nada”; “E ainda há um cheiro a folhas molhadas no ar”....
E estranheza de algumas frases imediatamente serve de gatilho, faz disparar poemas inteiros vindos do inconsciente.
68

Os elementos da fila de trás olham-se entre si. Seria esta fonte da famosa rebelião dos alunos? Seria esta a causa da agressividade destes adolescentes, mal habituados, que agora exigiam aos outros professores que lhes dessem aulas onde pudessem “mostrar o que sentiam” e “criar”, utilizando ferramentas passadas, para as suas próprias mãos, pelos professores? Pelo visto este professor dava-lhes liberdade para se exprimirem, mostrarem o que sentiam por de dentro - mesmo o horrível - desde que obedecendo a sistemas de regras. Liberdade total, mas dentro de sistemas de regras, neste caso as da literatura e poesia. Metiam os ossos, o tutano e a alma ao papel- e descobriam a sua própria voz interior. Como quantificar, avaliar, dar nora a revelações destas?
69

...mais vale morrer de pé, do que morrer de joelhos.
70

O hexagrama foi construído. I Ching, o livro das mutações: seis moedas atiradas, jogadas, e um destino, um trilho, um naco de estrada é revelado
[...]
O Abismal Duplo, hexagrama número 29 do I Ching. Ele lê rapidamente, apressado, e capta, soltas, as seguintes frases:
“Este hexagrama significa o mergulhar (...) como água numa ravina. No mundo dos homens, representa o coração, a alma aprisionada dentro dum corpo o princípio da luz encerrada dentro da treva. O nome do hexagrama tem um sentido adicional, repetição do perigo”.
81

“Duplamente perdido - estou perdido em mim e de mim, de mim e do outro, de ambos, as minhas duas metades, cindidas, estamos perdidos um do outro. Ambos estamos perdidos” murmura ele do escuro.
[...]
“Por um deles segue o coração - pelo outro a mente” diz a outra voz do outro lado do cubículo. “No segundo caminho as dúvidas nunca cessarão, pois a mente, essa metralhadora, nunca se cala, e a sua pergunta principal é sempre o que teria sido se tivesse seguido a outra direcção? Por isso, tu segues por esse caminho”.
[...]
“O hexagrama transforma-se num outro: o do Viajante. Eu seguirei por esse lado da bifurcação” diz ele, quase em surdina. “O oráculo não se ficou por um só julgamento Temos de cumprir o segundo também.”
82

O Viajante, hexagrama número 56 do I Ching. Ele cita-o para o outro homem:
“Terras estranhas e separação são o destino do viajante. A estrada é a sua casa.”
83

Noites intermináveis, a noite dos subúrbios de Lisboa, do tamanho da solidão que sentem dela, o inominável espírito montador, grande amazona, que levas os putos à tua procura por todas as garagens, becos e subterrâneos onde os rituais de música, de metal cromado e negro, pesado-pesado, violam virgens como nós.
86

Duro, cheio de sede - vagabundo, passou a não ter outra cama além do solo, nem outro telhado além das estrelas.

O acto físico, visível para o olho, é apenas e sempre uma confirmação no plano material, de algo que já aconteceu no plano da Alma. Não é preciso chegar a dormir com uma mulher para já ter cometido adultério no coração, basta fantasia.
108

“A estrada, doce donzela negra, a minha preferida, faz-me deixar todas as outras para trás. E a estrada, esta sede de liberdade, é de todas as escravas a única que me tem cativo - sou escravo desta vontade de liberdade, da tua pele negra, asfaltada entre cada implacável relâmpago ritmado do tracejado da auto-estrada.”
109

“Como vieste aqui parar?” pergunto à imagem pairando no espelho. Onde está a Cidade do Fogo Pálido, a Praia das Mil Ondas? Onde está esse lugar que procuro como maná? O rosto não demonstra qualquer emoção, pois sabe que não vale a pena antecipar qualquer resposta. Ela não existe, o que iguala a dizer que a resposta é: destino.
125

Depois contou alguém (já sempre alguém que conta qualquer coisa) que uma das miúdas entrou em pânico - desmaiou, disse que viu uma cara a espreitar da água, mas afinal era apenas uma máscara que viera a boiar, de muito longe, e que nunca afundara. Nada de especial.
131

“O que sobra da pessoa é uma casca, da espessura da madeira que se lhe colou à cara, donde ecoa o grito de todo o sofrimento universal. O testemunhar desse horror, reflectido no rosto da vítima sacrifical, enche todos de enorme piedade, compaixão. A visão do horror puro desperta o desejo de, finalmente, transcrever o mal e o sofrimento. Ver o poço de todo o horror faz aspirar pelos céus.”

De novo me lembro que, para os nossos sábios gregos, a iluminação, a descoberta da vida eterna, era o resultado do reconhecimento, da anamnese - o contrário da amnésia.
134

“Muito disto foi também trazido nos barcos dos portugueses” diz o irmão do dono. O outro irmão do dono ri, e o outro irmão do dono dá-me mais um chá.
Assim compreendo essas anacrónicas figuras que chegaram em caravelas de violência, aventura e ousadia - compreendo a figura branca de uma virgem cheia de graça -,mas não ouso compreender a outra que me fita com tanta raiva - a máscara negra duma deusa cheia de raiva.
“Uma pessoa não deve ser dono de uma máscara de quem não conhece. O teu amigo não sabe quem é o espírito, a quem essa máscara pertence” e agora falavam para o tribal.
Claro que não, claro que não.
135-136

...isso é ser velho: é ter-se um futuro muito mais curto que a memória do passado - e essa memória, em comparação à doce expectativa que a vida promete quando se é novo, essa memória não vale nada, não sabe a nada, é um deferido, sem a intensidade da actualidade, do Presente activo - sem a expectativa, a surpresa da vida. Para mim já não há surpresas. Entre todas as que já esgotei, a única que me resta é a morte.
148

A eterna e universal Fome - a carência de comida, de Justiça, de Amor, e muito especialmente, de Tempo. Pode-se redimir quase tudo com o dinheiro, que finge comprar quase tudo, comida, justiça e - ah! o amor - o dinheiro que compra tudo, menos o Tempo.
189

O teu tempo está a terminar, e ainda não a encontraste, pois não? Não encontraste aquilo que procuras, e perguntas-me o como? Como? Mas não há como!
190

Existe algum desacordo acerca do que acontece após a morte, excepto que, para todos os outros, a vida continua - até que eles próprios morram. Concordas?”
194-195

“...Tal como um sonho começa em certo ponto durante o sono, também ‘em certo momento’, aquilo que Eu Sou surge como consciência, aqui, e este mundo começa a existir. Eu abro os meus olhos - experimento a vida neste corpo-mente aparente. Depois de um período de experiência, Eu fecho os meus olhos - o mundo cessa, e não-nascido, para sempre Eu -”
195

“De entre todas as coisas” diz ele. “Gostaria de atravessar o deserto sob estrelas.”
211

...a quem a liberdade já não interessa, pois já não se sabem prisioneiros.
212

Todas as almas perdidas, sedentas de outra oportunidade nesta vida, são atraídas pela paixão entre um homem e uma mulher, dedilha ela no ar.
217

Existe um limbo, um espaço intermédio, onde vão parar todos os espíritos perdidos, em potência, mas que foram recusados à vida - que não foram queridos pelos pais. Crianças que foram concebidas numa raiz de furor ou indiferença, e depois foram colhidas antes de saírem para a luz.
[...]
Eu vejo esse limbo, esse planeta abandonado, cheio de crianças que ninguém nunca amou, perdidas, em busca de saírem para a luz, em busca de quem as ame, as guie, as eduque, as conduza à maturidade - e agora andam perdidas, rondando os quartos arfantes deste mundo, atraídas para os prostíbulos, os vãos de escadas, as casas de banho dos centros comerciais -perdidas, testemunhando em desilusão toda a semente desperdiçada, todo o terreno desbaratado, os baldios inférteis e as colheitas ceifadas antes da hora de darem grão, de darem fruto. Um planeta onde se salgam colheitas e a fruta fica a apodrecer, ainda raquítica, pelos cestos de lixo dos hospitais.
219-220

...é um planeta abandonado, um limbo de seres que nunca conheceram o amor e que acumulam toda a ignorância, todo o desprezo, toda a futilidade dos nossos actos - este planeta é o caixote de lixo da nossa casualidade....
220

“Tu tens os olhos em mim, mas o teu coração está com outro” gracejo sem sequer perceber, sentir as verdades que me saem da boca. Como uma síndrome de Tourette.
222

Visualizo as palmeiras, a sombra sob elas e as ondas ígneas, enormes e picantes de oxigénio, com plâncton mágico e fluorescente - gente boa e doce ao meu lado.
....
Olhos que rasgam a ignorância e vêem a divindade em tudo.
226

Ezili toda toda à volta da árvore. A árvore, milenar, demora a ser contornada em todo o seu diâmetro. Ezili roda-a, com a sua mão percorrendo um anel, toda a sua casca - que já tantas eras, tantas gerações de mulheres e homens testemunhou nascerem e morrerem. As cinzas de muitos são agora parte integrante do seu próprio corpo. A mão acaricia o tronco, fazendo um anel.
229

...sente no ferro a memória daquele que numa encruzilhada separou caminhos, e espetou aqui a faca para tentar descobrir o caminho de volta.
Neste ponto, ele dividiu-se de si mesmo, percebe Ezili segurando, firme, o cabo da faca. Como gémeos siameses, cindidos à faca, agora cada um com a sua vida, e esta faca é o único elo que tem para saber como o outro está. Faz sentido, este gémeos são como a humanidade cindida - a mesma Alma, perdida num abismo duplo.
230

...é preciso ouvir o coração para saber encontrar o caminho nas encruzilhadas.
232

A árvore range, suspira, ondula, e emana perfume. As suas raízes bebem, do lugar negro, do lugar dos sonhos e votos perdidos - que se diluem na clorofila entre os verdes - e suam-se em incenso, gotículas de seiva, orvalho vivo.
A árvore toca, com um ramo, o solo. É a sua bengala, pois Atibon Legba é uma anciã - ela sopra, por entre o vermelho dos seus frutos e flores, a seguinte melodia vibrante.:
“Para alguém numa longa jornada, como a de quem aqui espetou essa faca, eu, Atibon Legba, a árvore dos caminhos, sou o espírito da justiça, que liga os loa aos humanos. Eu abro os portões por onde tudo e todos devem passar.” Inclinando um pouco o seu peso sobre a bengala, Atibon Legba gosta de falar com a menina. “Lembra-te, pequena Ezili, que qualquer encruzilhada é um local do maior, pois todas as direcções, excepto uma, estão erradas.”
233

...os pássaros nas suas rotas migratórias, as terras distantes, as sementes voadoras, os jovens poléns, e as franjas dos ventos que se abraçam por todo planeta…
234

A fada azul, o feiticeiro drogado…
...mão direita - para curar - como com a esquerda - para envenenar…
241

O que já foi escrito abre caminho com a sua sereia de fúria e um olho, que a todo instante projecta numa nova rota no mapa desconhecido do inferno. O inferno reinventa-se a cada vez que nele pousamos o pensamento. Porque é algo que inventámos. Originalmente, bem vês, não existia. Tal como inventámos as câmaras de gás e os fornos.
253

quem planta ventos, colhe tempestades - quem pelo ferro mata, pelo ferro morre. Cada um colhe aquilo que semeia.
256

São ondas perfeitamente formadas mas não te podes distrair. Se és enrolado, vais ao fundo, e ficas em bife picado.
257

“E essa tatuagem?”perguntara-lhe eu apontando o semi-círculo em torno do umbigo.
“Esta sou eu” respondera ele com a surpresa de a quem é perguntado o óbvio.

“O Diabo não existe” sussurrei para mim mesmo.
“Então é porque nunca te viste ao espelho” ribombou ele, mesmo em frente à minha cara.
259-260

Ele levanta no ar o último copo de grogue, como numa saúde.
O acto físico, visível para o olho, é, apenas e sempre, uma confirmação, no plano material, de algo que já aconteceu no plano da Alma. Não é preciso chegar a dormir com uma mulher para já ter cometido adultério no coração - basta fantasiar. E no meu coração eu estava pronto para beber do cálice do ódio até à última gota. Sentira-lhe, já em fantasia, a sedutora textura metálica, o agridoce sabor a dor.
Ele esvazia o último copo de grogue.
A traição fora cometida.
269

Olhei para os meus passos na neve, atrás de mim. Agora, irreversíveis, consumados. Tinham-se cruzado com os de outras pessoas. “Olhando para o que já aconteceu é que se vê que tudo aconteceu como tinha de acontecer” pensei, tirando uma conclusão que, no fundo, não concluía, nem acrescentou nada.

Assim é o destino, como pegadas na neve, quando olhamos para trás vemos que, só aquele, e apenas aquele, foi o nosso caminho.
273

“Todos os que por aqui passam é porque estão à procura de algo, ou fugir de algo, o que vai dar ao mesmo”
“Todos estão à procura de algo. Uns querem experimentar a queda, ou a liberdade, outros procurar um amor pelo qual, literalmente, percam a cabeça, ou uma cidade cuja lei é o próprio querer,...
“Queres descobrir algo pelo qual valha a pena viver…”
“Não. Quero descobrir algo pelo qual valha a pena morrer - porque aquilo pelo qual eu vivia já não existe”
324

“Paradise Lost”
The mind is its own place,
and in itself can make a Heav’n of Hell
or a Hell of Heav’n
325

“Que encontres um amor de perder a cabeça e isso te inspire para uma história!”
326

Hiace Perdido de volta
331

“Aprender a estar quieto, sem fazer nada, é entrar, vivo e corajoso, no túmulo. E aí mesmo descobrir a liberdade de todo o cosmos”.
334

“O louva-deus” dizia a avó, que sentada na sombra observava os miúdos e o primo, para fazer o que tem a fazer tem de perder a cabeça. Assim também nas artes de vida-e-morte, tudo deve ser feito sem cabeça, só puro instinto e espontaneidade. Quando a cabeça entra - pensa, e estraga tudo.”
“E o que é que o louva-deus tem a fazer?” perguntou o rapaz por malícia.
“Fazer amor!” ri a velha divertida. “Para o macho fazer amor, a fêmea tem de lhe arrancar a cabeça. Para fazer amor o macho tem de perder a cabeça.”
O rapaz e a menina riem da explicação que queriam ouvir.

“...O louva-deus tem como sua missão sacrificar-se num acto em que ninguém dá, nem ninguém tira - apenas a própria vida, num fluxo e refluxo, inspira morte e expira vida - num simultâneo movimento de dança. A dança do louva-deus.”
335

“Levanta-te, Ezili” dizia-lhe o tribal. “Quando quiseres acertar na cabeça do oponente, não apontes à cara, mas sim à parte de trás da cabeça, à nuca, porque tu queres atravessar e o olhar do rastafari era doce.
340

sua decapitação será uma bênção.
341

o seu rosto era extremamente jovem, enquanto que o olhar estranhamente penetrante e maduro. Olhos transparentes, abismais.
367

“Nunca queiram ver uma velha chorar… Porque debaixo da casca de rugas e dor, reconhecerão a linda rapariga que a velha já foi, e a criança que não deixou de ser. E nessa criança, verão a vossa própria foto de criança.”
371

E eu quero colocar estas questões de modo sagrado - ars poetica - para tentar contribuir para a sanidade desta sociedade que cessou de fazer perguntas, de se sentar e ouvir o silêncio, ou de tentar sentir as palavras de outro irmão seu.
383

“As nuvens, pousadas no pôr-do-sol, levam-nos a pensar do horizonte” diz-me a miúda,
396

Tudo passara, como uma experiência, marcante talvez, mas que agora não valia mais do que uma memória, uma tatuagem cicatrizada sobre a pele.
416

A promessa, por exemplo, de nunca mais nos apaixonarmos por ninguém. Fiz essa promessa, como se a pudesse cumprir. Uma promessa que acabei de quebrar, pois não consigo controlar a quem amo.
422

Porque é que queremos testemunhar esta morte? Porque, mesmo sem saber os porquês, toda a morte é o desenlace duma qualquer história, e todas as tragédias valem por serem universos inteiros para quem os viveu.
473

“Nesta encruzilhada, pareces-te mesmo com o homem da dança” dissera a voz, que acrescentou: “Andaste perdido, mas agora estás de volta.”
Perdido de volta.
493


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