quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Trilha sonora do livro Medo e Delírio em LA, de Hunter S. Thompson

Mistura de ficção e realidade, não importa muito se essas músicas fizeram parte ou não da jornada maluca de Hunter S. Thompson, o que importa é que vale a pena conhecer essas 17 músicas:

Love in Vain - Robert Johnson


White Rabbit - Jefferson Airplane


Trechos do livro Medo e Delírio em Las Vegas

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Trechos de Medo e Delírio em LA - Hunter S. Thompson

ilustração de Ralph Steadman

“MATE O CORPO E A CABEÇA MORRERÁ”
p30

Senti que havia chegado o momento de fazer uma Reavaliação Dolorosa de toda aquela situação. Sem dúvida a corrida estava acontecendo. Eu havia testemunhado a largada; disso tinha certeza. Mas e agora, o que eu podia fazer? Alugar um helicóptero? Entrar de novo naquela caminhonete? Zanzar pelo maldito deserto assistindo àqueles idiotas passando a mil pelos pontos de controle, um a cada treze minutos...?
p46

Mas com essa outra viagem ninguém consegue lidar - um maluco pode entrar no Circus-Circus a qualquer hora, pagar 1 dólar e 98 e surgir de repente nos céus do centro de Las Vegas, doze vezes maior que Deus, urrando qualquer coisa que lhe vier à cabeça. Não, esta não é uma boa cidade para usar drogas psicodélicas. A própria realidade já é distorcida demais.
p57

Mandaram o infeliz para cá com uma tarefa perfeitamente normal - tirar algumas fotos de motocicletas e buggies correndo pelo deserto - e agora, sem saber, ele estava metido até o pescoço num mundo muito além de sua imaginação.
p65

Jesus do céu! Será que tem algum padre nesta taberna? Quero me confessar! Sou um pecador, caralho! Pecados venais, mortais, carnais, maiores e menores - você decide, Senhor... sou culpado. p.98

Se você não sabe, venha aprender...
Se você sabe, venha ensinar
p158 [título do capítulo]

Para uma cabeça cheia de ácido, a visão daqueles dois seres humanos fantasticamente obesos mandando ver em público, cercados por mil policiais atentos a um filme sobre os “perigos da maconha”, não seria emocionalmente aceitável. O cérebro rejeitaria aquilo: a medula tentaria se isolar dos sinais que receberia dos lobos frontais... e enquanto isso o cerebelo estaria desesperado, tentando interpretar aquela cena de outro modo antes de desistir e passar a tarefa para a medula - o que implicaria o risco de tomar providências físicas para acabar com aquilo.
p158-9

...Por que se dar o trabalho de ler jornais, se isso é tudo que têm a oferecer? Agnew tinha razão. A imprensa é uma gangue de covardes impiedosos. Jornalismo não é uma profissão, não é nem mesmo um ofício. É uma saída barata para vagabundos e desajustados - uma porta falsa que leva à parte dos fundos da vida, um buraquinho imundo e cheio de mijo, fechado com tábuas pelo inspetor de segurança, mas fundo o bastante para comportar um bêbado deitado que fica olhando para a calçada se masturbando como um chimpanzé numa jaula de zoológico.
p216

trilha sonora deste livro
consegui esse livro em um projeto de troca

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Por que homens deveriam manter um diário? - por Ollie Aplin no The Guardian

A história está cheia de homens que mantiveram diários, de Ernest Hemingway e Bruce Lee para Winston Churchill e Thomas Jefferson. Eles são diferentes entre si, mas esses homens tinham uma coisa em comum: encontraram força e conforto ao escrever seus pensamentos.

Bruce Lee escrevendo em seu caderno / Google

O professor James Pennebaker, especialista em psicologia social da Universidade do Texas, passou muitos anos a observar como escrever nossos sentimentos pode aumentar o funcionamento imunológico. Em Opening Up byWriting It Down, que eu tenho co-autoria com Joshua Smyth, Pennebaker diz que a escrita expressiva melhora a saúde e alivia a dor emocional. Ele inclui descobertas de centenas de estudos que mostram os benefícios para a saúde de expressar emoções, particularmente após um trauma.

Pennebaker explica: "Ao escrever, você coloca alguma estrutura e organização para esses sentimentos ansiosos. Isso ajuda você a passar por eles". Pennebaker também descobriu que a supressão de pensamentos negativos, ao invés de falar sobre eles, pode comprometer o funcionamento imune.

É por isso que o efeito da escrita de diários pode ser tão poderoso para os homens. O maior assassino dos homens entre 20 e 49 é o suicídio. Parte do problema é que quando eles ficam deprimidos, escondem seus sentimentos e preferem não procurar ajuda. Enquanto 67% das mulheres dirão a alguém que se sentem deprimidas, apenas 55% dos homens confiarão em alguém. Isso está mudando lentamente e os homens estão falando - do Rio Ferdinand ao Professor Green e ao Príncipe Harry.
Anotação pessoal de Bruce Lee / Fonte

Escrever como você está se sentindo tem imensos benefícios para a saúde mental e física - e os homens precisam mais disso, diz Ollie Aplin

Parte do problema é que, quando os homens estão deprimidos, eles tendem a ocultar seus sentimentos.

Embora este trabalho seja extremamente importante, ainda existem muitas outras pessoas que podem não se sentir bem para conversar e preferem manter as coisas privadas. É aí que o poder de manter um diário pode ser tão útil. É o próximo passo, sem se sentir muito exposto, onde os homens podem comunicar em privado os altos, baixos e todas as suas emoções no meio. Os cadernos são seguros para desabafar, sem medo de serem julgados.

Fui criado para não compartilhar o que estava acontecendo em casa e, portanto, como eu sentia. Não consegui expressar as coisas que estava passando com amigos e familiares. Eu estava tão desconectado das minhas emoções que eu não sabia do que estava pensando ou sentindo. Ficando sem emoção e resistindo, sentiu-se acomodado.
Desenhos feitos por Bruce Lee

Tudo mudou quando minha mãe tirou sua própria vida e, dois anos depois, sofri um colapso. Eu tinha 19 anos e ainda não estava pronto para conversar, então meu conselheiro recomendou manter o diário. Nove anos depois, meu diário mudou minha vida. Foi o catalisador que eu precisava e agora sou capaz de compartilhar, quando quiser, qual é a minha mente e como estou me sentindo.
Os efeitos foram benéficos nos últimos dois anos. Tenho pesquisado e projetado um tipo único de revista. MindJournal é um projeto guiado; um caderno preenchido com perguntas e tarefas que incentivam os homens a registrar seus pensamentos mais íntimos. Cada cópia contém um "manual de instruções" para inspirar os possíveis escritores a se expressar livremente.

Quando se trata de minha própria escrita, não há um conjunto específico de regras ou expectativas. Eu vejo a medicação para minha mente. Quando tenho dor de cabeça, sinto-me ansioso ou estressado, anoto algumas frases. Não tenho horários fixos - pode ser à noite ou à primeira hora da manhã.


Eu nem sempre quero falar sobre meus sentimentos; eu ainda gosto de manter as coisas privadas. E está tudo bem, porque eu tenho meu diário.


*   *   *


Extraído do texto escrito por Ollie Aplin no The Guardian (texto original em inglês)

Observações: 

O texto foi traduzido pelo Google Tradutor, mas tive de alterar algumas partes para fazer mais sentido e dar mais fluidez à leitura.

Não sei se o livro foi traduzido e publicado para o português.

Em relação ao texto ser dirigido para os homens; na minha opinião, por mais que as mulheres tenham uma facilidade maior em falar sobre os seus sentimentos, acredito que elas também deveriam conhecer o benefício de se manter um diário. Não acredito que no Brasil as pessoas tenham esse costume de escrever, seja homens ou mulheres. Por isso que gostaria de compartilhar esse texto e dirigir para todas as pessoas, seja homem, mulher, jovens, idosos e etc.

Outra consideração que devo fazer é em relação ao idioma. No inglês, existem duas palavras que se distinguem, e que no português só temos uma (que eu saiba). A palavra diary significa escrever sobre o seu dia, o que você fez e etc, como em um relatório. Mas journal tem um sentido mais amplo, no sentido que é escrito neste texto. Ou seja, escrever sobre seus sentimentos, seja em forma de desenhos, pinturas, poemas ou mesmo na escrita. Pode ser também através de colagens de revistas e etc. Não interessa a forma, mas o que aquilo significa para a pessoa. Em nosso vocabulário, a palavra diário pode servir para ambas as coisas.

Todas as fotos estão relacionadas a Bruce Lee e foram encontradas numa pesquisa do Google e não estão no post original do The Guardian, mas o autor cita Bruce Lee como um dos homens que mantinham um diário.

Recomendo todos os links aqui neste post (estão em amarelo). É só clicar que vai abrir em outra página.


Uma das páginas do diário de Bruce Lee / Fonte

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Trechos do livro Quando Nietzsche Chorou de Irvin D. Yalom

Quando Nietzsche Chorou
Irvin D. Yalom



Achar tudo profundo, eis um traço inconveniente. Faz com que forcemos a vista o tempo todo e, no final, encontra-se mais do que se poderia desejar. P. 111

Não sei porque viver! Não sei como viver! P. 177

Houve um momento hoje em que experimentei uma estranha ausência. Senti-me quase como se tivesse em transe. Talvez eu seja, afinal, suscetível ao mesmerismo. P.226

Às vezes, é pior para um filósofo ser compreendido do que ser mal compreendido. Ele tenta me compreender bem demais; ele me adula na tentativa de obter orientações específicas. Quer descobrir meu rumo e usá-lo também como seu rumo. Ele não compreende que existe um rumo meu e um rumo dele, mas que não existe “o” rumo. Ele não pede orientações diretamente, mas me adula e finge que sua adulação é outra coisa: ele tenta me persuadir de que minha revelação é essencial ao processo de nosso trabalho, de que o ajudará a falar, nos tornará mais “humanos” juntos, como se chafurdar na lama juntos significasse ser humano! Tento ensinar-lhe que os amantes da verdade não temem águas tempestuosas ou turvas. O que tememos são águas rasas! P. 226

Chegar aos 40 abalou a ideia de que tudo me era possível. Subitamente, entendi o fato mais óbvio da vida: que o tempo é irreversível, que minha vida estava se consumindo. É claro que eu já sabia disso antes, mas sabe-lo aos 40 foi uma espécie diferente de saber. Agora, sei que o “rapaz infinitamente promissor” foi meramente uma ordem de marchar, que “promissor” é uma ilusão, que “infinitamente” não tem sentido e que estou em fileira cerrada com todos os outros homens marchando em direção à morte. P. 235

Viva enquanto viver! A morte perde seu terror quando se morre depois de consumida a própria vida! Caso não se viva no tempo, certo, então nunca se conseguirá morrer no momento certo. P. 301

Primeiro desejar aquilo que é necessário e, depois, amar aquilo que é desejado. P. 343

Cada um de nós deve percorrer seu próprio caminho. P. 366

Amor fati: escolhe teu destino, ama teu destino. P. 366

Tive de procurar alguns livros para vender e assim ajudar uma senhora. Entre eles, estava este livro que li anos atrás. Encontrei duas folhas soltas com essas partes do livro e comecei a reencontrá-las no livro para colocar a página que tinha a frase/trecho. Os trechos e frases a seguir, não consegui encontrar no livro - mas provavelmente está lá (porque estava entre as minhas anotações nas duas folhas):

Isaac estava fazendo 60 anos e descreveu um sonho que tivera na noite anterior. Ele estava percorrendo uma longa e escura estrada e tinha sessenta moedas de ouro no bolso. Estava certo daquela cifra exata. Tentava segurar as moedas, mas elas caíam por um buraco no bolso e estava escuro demais para achá-las.

O sonho deve ser um desejo de perder anos e se tornar mais jovem.

Pode ser que o sonho tenha expressado um temor: o temor de que seus anos estejam acabando e de que logo não restará mais nenhum!

Ele estava em uma longa e escura estrada tentando recuperar algo que perdera.

Talvez os sonhos possam exprimir quer desejos, quer temores. Ou talvez ambos.

Acredito agora que os medos não brotam das trevas; pelo contrário, eles são como estrelas: estão sempre ali, mas obscurecidos pelo clarão da luz do dia.

Os pensamentos são sombras de nossos sentimentos: sempre mais escuros, vazios e simples.

Ninguém mais morre devido a verdades fatais hoje em dia; existem antídotos em demasia.

De que serve um livro que não nos transporte além de todos os livros.

Qual é o sinal da libertação? Não mais se envergonhar diante de si próprio!

Morrer é duro. Sempre senti que a recompensa final dos mortos é não morrer nunca mais!


Para mim a palavra “dever” é pesada e opressiva. Reduzi mais deveres a apenas um: perpetuar minha liberdade. O casamento e seu séquito de possessão e ciúme escravizam o espírito. Eles jamais me dominarão. Espero, que chegue o tempo em que nem o homem nem a mulher sejam tiranizados pelas fraquezas mútuas.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Trechos do livro O Livro de Corintha de Fernando Monteiro


“moça lendo numa sala”, poderia ser o título da gravura que é a janela – a única sem cortinas – na fachada cinzenta do prédio manchado de umidade em torno do retângulo onde a jovem se mantém absorta no livro.
16

Comida, estômago, frio, sexo – e a perda de cabelo da juventude. O aroma no nosso encalço: loção contra a queda de cabelo de quem cortou os pulsos, todos chegaram tarde, ninguém pôde salvar o antigo inquilino que não morreu porque perdia o cabelo, mas porque o dia e a noite haviam derrotado sua pasta de tentativas malogradas no voltar para casa, para a mulher, para os filhos e para longe do centro onde agora o apartamento que ele nunca pagava foi alugado à moça que lê, na falsa noite afastada pela lâmpada, a jovem de pijama com as pernas neste momento cruzadas (o vértice do V do ventre apertado na peça de baixo do pijama que se marca na pele macia da parte de dentro da coxa), não uma gravura, não um quadro cinza de Hopper, um interior velado de Veermer, um quarto torturado de Goya, porém uma pessoa real, uma mulher viva a respirar no ritmo do planeta em sua rota de mínimas alterações ao longo de séculos empoeirados. Corintha vê que também há poeira no tampo arranhado da mesa. 
17

Retomaram o trabalho, o homem que dita, metódico, monocórdio mesmo, e a moça que bate, com dedos com um pouco mais de convicção sobre as teclas com as letras gravadas, gafanhotos agora acordados pelo seu toque de unha e carne, toc, toc-toc-toc, toc-toc-toc – irregular e irritante para vizinhos e, talvez. Para algum mendigo que queira dormir na calçada, após pedir permissão para acatar as mangas caídas no quintal. 
33

Há tantos pequenos mistérios em torno de uma vida sem mistério algum, numa janela aberta para a curiosidade, quando ela se abre, é claro, sem cortinas para a visão de rotinas suaves ou agitadas, tensas ou calmas, das mulheres sozinhas e das casadas, que se tocam e não se toca, leem livros e leem revistas coloridas às vezes trazidas de consultórios, dobradas nas bolsas. 
40

“As cortinas que comprou para o apartamento da amiga, ela não trouxe porque achou que arrastá-las seria deselegante. E se não é mesquinha, ela é, sem dúvida, econômica – e nada paranoica com a intimidade desvelada. ‘Cortinas podem esperar’, talvez formule, para si, numa reflexão despojada e despreocupada com a ausência do pano que velaria a ocasional transparência dos pijamas curtos e dos decotes confortáveis (uma moça nunca se livra de olhares, certo? Ela é focada pelos olhares masculinos, e examinada, avaliada, analisada às vezes em segundos, quando é bonita e passa no meio de homens desocupados que fixam a atenção nas pernas, na bunda, nos seios adivinhados e no seu rosto que se mantém impassível ou que endurece um pouco, quem sabe, na falsa expressão ausente de quem espera não ser perceptível, num cerrar de maxilares ou num mais tenso “olhar para frente” o ponto para além dos pesados olhares “latinos” - conforme localizam as revistas para mulheres talvez feitas por homens que não se imaginam na condição de fêmeas estudadas, reavaliadas, eles, queiram ou não queiram, fazendo revistas para machos que olham moças de alto a baixo etc). 
46-47

“Você está obviamente mais cansada do que a borboleta humana que o louva-a Deus traz para dentro da teia de enganos de quem se perde pelos olhos.”

Ele disse isso mesmo – ou ela imaginou? Foi um pedaço do livro ditado que ficou errando na sua cabeça, ou foi, de fato, dirigido a Corintha, uma frase torneada como são as frases mais coloquiais de Methódio Guerreiro? 
48

...os cegos envelhecem mais lentamente, uma vez que, pelo menos, não estão cercados da própria imagem nos espelhos, não podem acompanhar o trabalho dos anos no rosto, no corpo que só tateiam e sentem por dentro. A velhice é, para ele, também uma dimensão obtida principalmente do “externo” que inclui os reflexos, as fotografias, as estranhezas de ver a si próprio como o outro nos vê (estava brincando? Não, não estava brincando; sua expressão era séria e melancólica, na face parada). 
65

...minha mãe dizia que eu era o único filho médium que ela tivera, numa família de católicos (ela morreu convertida à religião dos espíritos, com aquela cara de bebum de Allan Kardec olhando das capas de livros de distribuição gratuita nos Centros apolíticos, fios, juntando gente cada vez mais fraca pela crença da purgação de crimes através das vidas sucessivas que levavam um Lênin a reencarnar como Eva Perón, para de novo viver o destino de múmia insepulta). 
76

Ela gostava de escrever com a numeração romana das partes divididas. Dizia que havia lido livros assim, toda a vida, e que isso dava um agradável “ar seguro, de mostrador de relógio antigo” aos capítulos sucessivos, com começo, meio e fim, nessa ordem, faz favor. 
83

...um livro que é como todos os livros: uma ilha de solidão suspensa da armadilha de solidão da vida.
83

(...) Um livro é um objeto diferente dos demais: é só papel, porém só de plátanos muito mais tarde transformadas nas florestas nas florestas abstratas do livro de papel que ultrapassa os bosques da tarde, da noite mergulhada num livro pleno de sol, na biblioteca fechada de Corintha:
Preciso organizar anotações que estão metidas em todos os livros da minha pequena biblioteca particular, (...)
84

Esta noite, Corintha leu durante duas longas horas. Talvez seja daquelas que se sentem obrigadas a terminar um livro, a ir “até o fim”, simplesmente porque “começaram”. 
85

...e ele também comenta, agora, sobre coisas inesperadas, fala das rosas do jardim da frente e lhe presenteou com alguns frutos da estação, para que ela os levasse para casa (“são tantos que alguns irão apodrecer, ficarão passados, estragados”). 
96-97


...o apartamento está fechado, vazio de novo, “PARA ALUGAR” mais uma vez, nem bem acabara de chegar anova inquilina que partiu, como um fantasma, levando móveis, seus quadros, seus tapetes e seus livros esvaziados da mágica da ponte de palavras num vão de pombos pousados sobre a caixa de cimento do ar-condicionado, tampada com papelão (vi quando fazia esse improviso, com tesoura e fita adesiva nas mãos). Agora, o apartamento é uma janela fechada, um “não” de poeira e vidro corrido para baixo, uma leitura interrompida de atos, gestos, decisões mudas sobre pequenos assuntos que escapam do observador afastado e próximo, que conhece os ritmos, as rotinas desimportantes da casa de uma desconhecida que faz falta, ou que voou como os pássaros, sumiu do quadrado do prédio vizinho agora deserto do que me interessava nele, não a parede, nem uma janela iluminada, qualquer janela, mas aquela pela qual vai se formando a onda de ternura curiosa, (...). 
116


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

trechos do livro Vi uma foto de Anna Akhmátova de Fernando Monteiro



Vi uma foto de Anna Akhmátova,
numa oferta de segunda mão
em livraria de terceira
fechando as portas também baratas
em liquidação de quarta despedida
dos leitores de páginas impressas
à tinta das antigas tipografias
condenadas aos museus,
setor dos tipos móveis de Gutemberg
que não mais importa.




Isso faz muito tempo.
Isso faz algum tempo.
Isso faz pouco tempo.
Que tempo isso faz?

Sei que eu via a linha do mar de chumbo descansando do esforço da manhã.

Os guarda-sóis permaneciam na distância, a projeção de sombra redonda
dos panos mudando da aeria seca para a areia molhada onde restavam
pegadas de banhistas despreocupados, já retirados para seus bangalôs
no limite das árvores protegidas pela cerca branca das praias particulares.



Você pensa, então, que não está só - mas está.
Pode estender a mão e tocar naquele ombro da outra noite,
há muito tempo,
há tempo nenhum - há quanto tempo?



Esta mulher está só
sumindo entre as samambaias
com o mesmo riso da juventude
a escrever poemas.



A Natureza não sabe quando peca,
nem quando destrói.
Ela é nosso segredo,
e está do lado da cegueira,
da inocência das leoas sem passado
e sem futuro (uma intensidade branca
num eterno presente).
(...)
A Natureza é sem justiça e sem perdão,
acende-se nos vulcões e nos corações
dos cartões de Natal atravessados
de uma seta desenhada à caneta.
E ela está prenha dos próprios filhotes
de há três estações
brincando na relva (o teu temor).



Ela o desafiou antes de mim,
ela me condenou sem condenar
e me abençoou sem abençoar (...)



Estávamos tão loucos - em Paris,
novamente - que discutíamos por qualquer coisa
ao alcance (ou não) da discórdia:
a cor das paredes do hotel de Pera,
o lado de entrada na massa da Pirâmide,
para que serviria uma construção tão monstruosa
(“está claro que nunca foi apenas uma tumba”),
alguma moça que me convidara para o chá,
uma música pedida por mim (“para quem?”).
Para você.
“Para mim?”
Pois eu não me lembro de gostar dessas harmonias de gosto vulgar”...

Porque em Paris ela se fazia mais do que ciumenta.
E se tornava irascível, nervosa e com medo de ficar
muito velha, se repente.
Temia mudar como as flores, de um dia para o outro.




(...)
em data guardada entre as garras do tempo
abrindo frestas quando uma mulher
solitariamente se ressente
do próprio reflexo.



Trechos do livro O Livro de Corintha de Fernando Monteiro