quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Maçã Agreste - Raimundo Carrero (trechos)


A comédia inútil, o riso martirizado

Naquela semana - nos dias que antecederam a conversa -, toda a carga de risos e gargalhadas tinha se apossado dele. Não lhe faltavam angústia e ansiedade, assim como não estavam ausentes alegria e prazer. A isto chamava: sentir a vida.

Quando voltou para casa, não podia estar mais inquieto, e, no entanto, mais satisfeito. 15

Não é pelos olhos que elas começam a morrer? Desse tipo de morte que é estar, irremediavelmente, morto, e não poder ganhar uma sepultura porque ainda vive? 18

Saí de casa, outro dia, ao anoitecer. Sem dizer nada a ninguém lamentava-me por não ter permanecido no ventre da minha mãe para não ser obrigada a assistir ao desespero do mundo, para não me ser imposta a visão de homens e mulheres que vivem os grandes tormentos, que formam a contorção da existência e que são incapazes de construir a estrada que nos leva à casa do sacrifício. 29-30

- Sua mãe parece uma velha gata grávida.
Jeremias insistiu:
- Ou uma vaca inquieta no curral. 36

Ela tinha certeza: na primeira vez em que a chamaram de Sofia estava quase sem dentes. Era apenas uma menina, no tempo em que, inexplicavelmente, os dentes começavam a amolecer, ficavam presos por uma leve película na gengiva, moviam0se ao toque dos dedos e ela passava, tempos inteiros, no fundo do quintal, entretida. Tinha medo, é capaz de morrer engasgada no sono, diziam,mas recusava-se chorando, a permitir que os arracassem, sofria com a possível dor. Não vai doer nada, repetiam. Pedia tempo e corria para o quintal onde, fatalmente ficava mexendo no dente. Achava mesmo que ele devia cair. Um frio no estômago. Por que o dente não ficava na gengiva? Permanecia sem comer, com receio. Às vezes, sem esforço, tinha-o na mão. Zangava-se com os próprios temores. 41

Nunca pensava antes, com tanta insistência, no próprio nome. Sentia-se apenas uma mulher, um ser humano, que ocupava um pequeno espaço no mundo, e caminhando, inexoravelmente, para o futuro, sempre para o futuro, ou para a velhice, e não tinha outra preocupação que não fosse viver. E viver, para ela, significava trabalhar, estudar e divertir-se, conhecer pessoas, passear, sem o mínimo desejo de construir um patrimônio. Agora, no entanto, inquietava-se. Procurava desvendar o mistério do seu nome, um título que ela mesmo não escolhera, e que cada vez que o pronunciava era como se outra pessoa estivesse no seu lugar. Estava para sempre condenada a viver assim, desencontrada, confundindo o que carregava no íntimo com o que se desenvolvia por fora, incapaz de compreender a existência, já que existir, para ela, era passar os dias, feito alguém que atravessa uma ponte. 42

...começou a refletir que a questão não era mesmo possuir um nome. O problema estava, talvez, na existência. 43

...as pessoas que passavem não riam apenas as suas vestes e o seu corpo, mas sobretudo o seu dilaceramento. 52

...nada era impossível para quem tinha desejos e determinações. 60

Embora narrase com convicção, Alvarenga não deixava de comer e de beber, às vezes limpando os dentes com as unhas, em algumas ocasiões parando para respirar e tossir. 61

Pobreza não me entristece,
riqueza não me assusta.
Só gosto do que é bom,
não quero saber quanto custa.
96

As pernas vacilavam mas a decisão era firme (ainda que o coração se rebelasse). 119

...não era qualquer homem que dava costas ao sol e ainda assim permanecia iluminado, os olhos cheios de ternura e valentia. Importava-lhe não desmerecer o caminho, sem cansar, sem permitir que as traças e as baratas lhe roessem as vestes, sem dividir o corpo e a alma, que agora eram só, inseparáveis, fogo cravado no coração. Abrasada e resplandecente. 204

Antes de fumar devo esquentar o café, que ela deixava pronto para não ser acordada cedo. Aproveitou a chama quase extinta, acendeu o fogo e, de costas para a cama, prefiro não vê-la, fere meus olhos e incomoda-me, esperou que a chaleira fervesse, e não posso repassar sempre essas coisas, cruzou os braços, sob pena de ficar preso num redemoinho eterno, atingido pelo frio, o cão grunhiu e latiu, despertando, saindo também da noite para o dia. 213

Está no maior michê chapinha faça força faça frequente seu medo homem. 219

Dizia que a vítima é que é o monstro, não se conformando com a dor e com a morte, expelindo ódio ao invés de sangue, insultando o homicida, escarrando os próprios dentes, gritando, prendendo nos pulmões a última respiração e nela guardando paixão, raiva, horror. Toda destruição é bendita, todo ódio sagrado e todo tormento divino. Não aceitaria mais ser empurrado para as margens, ser espremido nas paredes, ser atirado ao caos. Se alguma coisa ainda lhe restava e se não podia mais suportar o peso do próprio corpo, devia passar de vítima a homicida, transgredindo.

Terão toda a noite para roubar e matar, durante o dia rezaremos e louvaremos a Deus e a pátria. Sou o que sou e sendo o que sou não retornarei mais à poeira antiga. 222

Havia, inclusive, a palavra feliz inteiramente abominável naquelas circunstâncias. Os fiéis deviam sentir-se felizes, mas felizes com desespero. 230

Não estou preocupado em ser santo, não estou preocupado em ser demônio, não estou preocupado em ser profeta. Quero ser sincero. Sincero mesmo quando minto, porque a mentira exige uma grande dose de sinceridade. Não se é mentiroso a si mesmo. Quem primeiro deve ser convencido da mentira é o mentiroso. E isso não acontece comigo. É impiedoso não ter sinceridade. É grotesco. 233