quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O Melhor do Inferno - Christiane Tassis (trechos)


"Quando saio pelas ruas, alguns me jogam pedras, outros me admiram. Querem me pegar - fujo. E, mesmo no meu absoluto silêncio, acabo arrumando briga.

Incomodo por existir. Não me contenho: se me desagradam, arrepio, avanço. Sou manso e me finjo de manso: costumo fingir que sou eu mesmo.

Quando estou feliz, não escondo - meu corpo me entrega, soltando sua particular melodia. Dizem que não gosto do meu dono, mas a verdade é que não tenho dono, mas a verdade é que não tenho dono. Afago quem eu quero, arranho quem posso. Alguns se comovem, outros me chutam, mas não ligo - só não apanho duas vezes da mesma pessoa. (Só eu sei o tamanho da pulga que me azucrina.)

Faço sexo para doer nos outros. Me dou bem com loucos. Me utilizam em hospitais psiquiátricos, trago a cura. Minhas pupilas finas e retas são lâminas que cortam os pontos cegos do dia. Meus olhos semicerrados se distraem admirando os estranhos corpos que se movimentam pelo espaço. O que fazem dentro do que é meu?

Sou o dono do tempo. Faço o que quiser com ele. Sou dos espíritos. Já me queimaram nas fogueiras e continuo aí, porque gosto do que voa: se voar, eu mato.

Sou bonito. Jamais causaria indiferença em uma pessoa. Sou curioso e, ao contrário do que dizem, a curiosidade não me mata: me faz viver. E eu sou vivo. Apronto. Um gato em cima do muro não é um gato em cima do muro: é o domínio da queda. Caio, mas caio em pé. O salto é o começo do mundo, não o fim. Apenas uma vez, em busca de aventuras, pulei errado e quebrei meu canino. Que sorte: é uma contradição ter este nome em mim, De outra vez, entrei debaixo de um carro para dormir e me sujei de óleo. Que nojo, logo eu, que sou tão limpo. Sou autolimpante. Mas continuo me aventurando: minhas especialidade é sobreviver. Posso pular desta janela apenas como exercício, ao contrário do vizinho de raça humana que todas as noites ensaia para pular, coitado: o máximo que consegue é cuspir. Eu, pela minha natureza, terei que tentar sete vezes - oh, como é cansativo morrer. Por isso até agora permaneci vivo. Porque é no escuro que meus olhos brilham. Porque sou festejado pelos poetas e guardo tumbas de faraós, ao mesmo tempo guardião e imperador da eternidade. Porque sou o único animal que amortece a própria queda. Porque tenho gestos sensuais e o corpo flexível para suportar, com a mesma elegância, as minhas longas sete vidas.

Esta é uma noite de decisão. Talvez eu pule. Talvez eu erre. Preciso fingir que não sou perfeito." pag. 13 - 15

"Gostaria de contar esta história como uma piada, uma conferência, uma peça de teatro, aquelas coisas que as pessoas contam sempre do mesmo jeito, repetindo palavras, gestos, interjeições, pausas - todos aqueles truques que garantem o sucesso do relato." pag. 18

"No quarto de Isabel encontrei estilhaços de papel azul espalhados ao lado de fotografias antigas, dezenas de gaturas de cartão de crédito e um papel onde estava impresso: EU SOU A LUA, NÃO TENHO LUZ PRÓPRIA E NÃO ESTOU EM BOA FASE." pag. 23

"No armário, encontrei uma caixa de comprimidos tarja preta. Abri. Dentro dela, um papel azul, onde ela escreveu à mão: Já tentei viver com a amineptina, a amitriptilina, a bupropiona, o citalopram, a mianserina, e agora tento um novo casamento com a fluoxetina. O amor é mesmo uma coisa química." pag. 25

"Gostava também de interpretar clássicos da pintura, dando-lhes movimento. Na maior parte das imagens aparecia linda, enigmática, afinal, 'grandes mestres não pintaram mulheres gargalhando': Isabel com brinco de perola, Isabel a caminho, Sagração de Isabel, Isabel de azul, Isabel com bule, Grande nu de Isabel, Isabel descendo a escada. Assim, deixava de ser a cópia para ser o original.
E eu, só olhava." pag. 48

"- Em breve, seremos apenas palavras. Sem caligrafia. Uma fonte. Igual à que todo mundo usa". pag. 55

"- As provas de amor são verdadeiras. Estão gravadas.
- São verdadeiras por que estão gravadas?" pag. 56

"- Não faço amor com meu amor próprio"

"- Pensei que as coisas estivessem claras para você
- Clara como o vidro para passarinhos."

"- Hoje em dia os covardes mudaram de status. São aqueles que se preservam. No meu tempo as pessoas se amavam. Acasalavam-se. Reproduziam-se. Eu nunca quis fazer isso, achava antigo. Veja como as coisas mudam: agora, acho moderno. Nunca fui mesmo uma mulher do meu tempo." pag. 57

"- Gostaria de ter sido informada de que era apenas uma passagem em sua vida. Talvez, como nas curtas viagens de férias, teria aproveitado melhor cada segundo, ou sugerido lugares mais interessantes para ir, do que a ela da TV." pag. 58-59

"- Isabel, estava no contrato: até quando durar a vontade. Você mesma escreveu". pag. 59

"Pediu para interferir nos jardins, dei carta branca. Espalhou espelhos nas árvores, plantas, flores, 'para que se multiplicassem'". pag. 123

"Guadalupe catava tudo o que sobrava das nossas refeições para alimentar suas plantas: borra de café, folhas de cenoura, casca de melancia, alface, restos, raspas, folhas mortas, 'tudo isso é vida'". pag. 124

"- Sou o único animal que amortece a própria queda. Tenho gestos sensuais e o corpo flexível para suportar, com a mesma elegância, as minhas longas oito vidas". pag. 141

"Foi Guadalupe quem primeiro apareceu aqui. Dentro de um telejornal. Estava sendo presa por tentar tirar a sílaba "ni" das placas dos prédios dos ministérios públicos. Já tinha conseguido tirar algumas: criou o mistério do Trabalho, o mistério da Cultura, o mistério da Saúde, mas foi capturada no hora do mistério da Justiça." pag. 145