sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A morte como conselheira

Meu pai compartilhou esse texto comigo e resolvi compartilhar aqui


Rubem A. Alves
Lembra-te,
Antes que cheguem os maus dias, e se rompa o fio de prata, e se despedace o copo de ouro,
E se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço...
Elesiastes 12, 1-8

A vida está cheia de rituais para exorcizar a morte. E, no entanto, é tudo mentira. Certo está o poeta.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei; o que só agora vejo que deveria ter feito, o que só agora claramente vejo que deveria ter sido isto é que é morto para além de todos os Deuses...

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver. Enterro-os no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos... (Álvaro de Campos, Poesias, “Na noite terrível...”)
Não, não, a Morte não é algo que nos espera no fim. É companheira silenciosa que fala com voz branda, sem querer nos aterrorizar, dizendo sempre a verdade e nos convidando à sabedoria de viver.
O que ela diz? Coisas assim.
“Bonito o crepúsculo, não? Veja as cores, como são lindas e efêmeras... Não se repetirão jamais. E não há formas de segurá-las. Inútil tirar uma foto. A foto será sempre a memória de algo que deixou de ser... E esta triteza que a beleza dá? Talvez porque você seja como o crepúsculo...
É preciso viver o bastante. Não é possível colocar a vida numa caderneta de poupança...”
“Você sabe que horas são? Está ficando frio... E as cores do outono? Parece que o inverno está chegando...”

“O que é que você está esperando? Como se a vida ainda não tivesse começado... Como se você estivesse à espera de algum evento que vai marcar o início real da sua vida: formar, casar, criar os filhos, separar da mulher ou do marido, descobrir o verdadeiro amor, ficar rico, aposentar... Como se os seus instantes presentes fossem provisórios, preparatórios. Mas eles são a única coisa que existe...”
A branca fala da Morte não nos aterroriza por nos falar da Morte. Ela nos aterroriza por nos falar da Vida. Na verdade, a Morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria Vida, as perdas, os sonhos que não sonhamos, os riscos que não tomamos (por medo), os suicídios lentos que perpetramos.

A morte tem o poder de colocar todas as coisas nos seus devidos lugares. Longe do seu olhar, somos prisioneiros do olhar dos outros, e caímos na armadilha dos seus desejos. Deixamos de ser o que somos, para ser o que eles desejam que sejamos. Diante da Morte, tudo se torna repentinamente puro. Não há lugar para mentiras. E a gente se defronta então com a Verdade, aquilo que realmente importa. Para ter acesso à nossa Verdade, para ouvir de novo a voz do Desejo mais profundo, é preciso tornar-se um discípulo da morte. Pois ela só nos dá lições de Vida se a acolhemos como amiga. “A morte é nossa eterna companheira” – dizia D. Juan, o bruxo. “Ela se encontra sempre à nossa esquerda, ao alcance do braço. Ela nos olha sempre, até o dia em que os toca. Como é possível a alguém sentir-se importante, sabendo que a morte o contempla? O que você deve fazer, ao se sentir impaciente com alguma coisa, é voltar-se para a sua esquerda e pedir que sua morte o aconselhe. Estamos cheios de lixo! E a morte é a única conselheira que temos. Sempre que você se sentir, como acontece sempre, que tudo está indo de mal a pior e que você se encontra a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua morte e lhe pergunte se isso é verdade. Sua morte lhe dirá que você está errado, que nada realmente importa, fora do seu toque. Ela lhe dirá: Ainda não o toquei”.

Houve um tempo em que nosso poder perante a Morte era muito pequeno. E, por isso, os homens e as mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, nosso poder aumentou, a Morte foi definida como a inimiga a ser derrotada fomos possuídos pela fantasia onipotente de nos livrarmos de sou toque. Com isso, nós nos tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do perigo de que, quanto mais poderosos formos perante ela (inutilmente, porque só podemos adiar...), mais tolos nos tornamos na arte de vier. É, quando isso acontece, a Morte que poderia ser conselheira sábia transforma-se em inimiga que nos devora por detrás. Acho que, para recuperar um pouco da sabedoria de vier, seria preciso que s tornássemos discípulos e não inimigos da Morte. Mas, para isso, seria preciso abrir espaço em nossas idas para ouvir a sua voz. Seria preciso que voltássemos a ter os poetas...

“Extraído de: ALVES, Rubem A. – A Morte como conselheira. IN: CASSORLA, Roosevelt M. S. (Coord.). Da Morte: Estudos Brasileiros. Campinas: Papirus, 1991. Pg 11 – 15.”

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