quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Amor, fé e esperança - trecho do livro O Tambor

 Já vem! Já vem! Quem vem? O Menino Jesus, o Salvador? Ou era o celestial homem do gás, com o gasômetro fazendo tique-tique sob a braço? E ele disse: Eu sou o Salvador deste mundo, sem mim não podeis cozinhar. E aceitou o diálogo, ofereceu uma tarifa favorável, abriu os registrozinhos de gás recém-polidos e deixou sair o Espírito Santo, para que se pudesse assar a pomba. E distribuiu nozes e amêndoas que, ao se partirem ali mesmo, desprendiam também emanações: do Espírito e do gás, a fim de que os crédulos pudessem ver sem dificuldade, entre o ar espesso e azulado, em todos os empregados da companhia e à porta dos grandes armazéns, Papais Noéis e Meninos Jesus de todos os preços e tamanhos. E assim acreditavam na companhia de gás, sem a qual não há salvação possível, e que, com a pulsação ascendente e descendente dos gasômetros, simbolizava o destino e organizava a preços módicos um Advento que fazia crer a muitos crédulos que o Natal viria. Mas não sobreviveriam ao cansaço das festas senão aqueles que não haviam conseguido uma provisão de amêndoas e de nozes suficiente, embora todos tivessem achado que as havia de sobra.

Mas logo que a fé em Papai Noel se revelou fé no homem do gás, recorreram, sem respeitar a sequência da Epístola aos Coríntios, ao amor. Está escrito: Eu te amo, oh, sim, te amo! Amas a ti também? E, dize-me: Amas-me tu também, amas-me verdadeiramente? Eu também me amo. E de puro amor chamavam-se uns aos outros de rabanetes, amavam os rabanetes, mordiscavam-se e, de puro amor, um rabanete mordia o rabanete do outro. E contavam uns aos outros exemplos de maravilhosos amores celestiais, embora também terrenos, entre rabanetes, e pouco antes de morder sussurravam-se mutuamente, alegre, famélica e categoricamente: Dize-me, rabanete: tu me amas? Eu também me amo.

Mas, depois que por puro amor tinham arrancado a mordidas os rabanetes e a crença no homem do gás tinha se convertido em religião do Estado, já não restava no armazém, após a fé e o amor, que já tinham tido sua vez, senão o terceiro artigo invendável da Epístola aos Coríntios: a esperança. E enquanto continuavam a roer os rabanetes, as nozes e as amêndoas, esperavam que aquilo terminasse logo, para poder recomeçar a esperar ou para continuar esperando, depois da música final ou então durante a música final que logo acabaria de se acabar. Ainda não sabiam bem o que ia acabar. Esperavam apenas que acabasse logo, que acabasse amanhã, tomara que hoje ainda não, pois que seria deles se aquilo acabasse de repente? E quando aquilo se acabou de verdade, começaram em seguida a fazer do final um novo princípio cheio de esperança, porque, cá entre nós, o final é sempre um princípio, e há esperanças e todo final, mesmo no mais definitivo dos finais. Assim está escrito. Enquanto o homem esperar, voltará sempre a começar a esperar o final cheio de esperanças.

Eu, contudo, não sei. Não sei, por exemplo, quem se esconde hoje em dia sob as barbas do Papai Noel, não sei o que o Diabo leva em seu alforje, não sei como se abrem e fecham as chaves do gás; pois volta a se difundir um ar de Advento, ou continua se difundindo ainda, não sei, talvez a título de ensaio não sei para quem estarão ensaiando, não sei se posso crer, oxalá possa, que limpem com amor as chaves do gás para que cantem não sei em que manhã, não sei em que tarde, não sei se as horas do dia têm algo a ver com isso; porque o amor não tem hora, e a esperança não tem fim, e a Fé não tem limites; só o saber e a ignorância estão ligadas ao espaço e ao tempo, e terminam a maioria das vezes a repetir: eu não sei, oh, não sei, por exemplo, com que eles enchem as tripas, que intestinos são necessários para preenchê-las, não sei com quê, por mais legíveis que sejam os preços do recheio, fino ou grosseiro; não sei o que está compreendido no preço, não sei com que recheiam os dicionários, assim como as tripas; não sei de quem é a carne nem de quem é a linguagem: as palavras significam, os açougueiros calam, eu corto vidros, você abre os livros, eu leio aquilo de que gosto, você não sabe do que gosta: fatias de lingüiça e citações de tripas e livros - e nunca chegaremos a saber quem teve de calar, quem teve de emudecer para que as tripas pudessem se encher e os livros pudessem falar, livros embutidos, apertados, de letra miúda, não sei, mas suspeito: são os mesmos açougueiros que enchem os dicionários e as tripas com linguagem e com lingüiça; não há nenhum Paulo, o homem se chamava Saulo, e, como Saulo, falou à gente de Corinto de algumas lingüiça prodigiosas, que chamou de fé, esperança e amor, e elogiou-as dizendo que eram de fácil digestão, e ainda hoje, sob algumas das formas sempre mutantes de Saulo, tenta impingi-las a nós.

Quanto a mim, arrebataram-me o vendedor de brinquedos e, com ele, quiseram eliminar do mundo os brinquedos.

Era uma vez um músico que se chamava Meyn e tocava trompete maravilhosamente.

Era uma vez um vendedor de brinquedos que se chamava Markus e vendia tambores de lata esmaltados de vermelho e branco.

Era uma vez um músico que se chamava Meyn e tinha quatro gatos, um dos quais se chamava Bismarck.

Era uma vez um tambor que se chamava Oskar e dependia do vendedor de brinquedos.

Era uma vez um músico que se chamava Laubschad e era membro da Sociedade Protetora dos Animais.

Era uma vez um tambor que se chamava Oskar e ao qual arrebataram o seu vendedor de brinquedos.

Era uma vez um vendedor de brinquedos que se chamava Markus e levou consigo todos os brinquedos do mundo.

Era uma vez um músico que se chamava Meyn e, se não está morto, continua vivendo hoje e tocando maravilhosamente o seu trompete.

178-180

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