“moça lendo numa sala”, poderia ser o título da gravura que é a janela – a única sem cortinas – na fachada cinzenta do prédio manchado de umidade em torno do retângulo onde a jovem se mantém absorta no livro.
16
Comida, estômago, frio, sexo – e a perda de cabelo da
juventude. O aroma no nosso encalço: loção contra a queda de cabelo de quem
cortou os pulsos, todos chegaram tarde, ninguém pôde salvar o antigo inquilino
que não morreu porque perdia o cabelo, mas porque o dia e a noite haviam
derrotado sua pasta de tentativas malogradas no voltar para casa, para a
mulher, para os filhos e para longe do centro onde agora o apartamento que ele
nunca pagava foi alugado à moça que lê, na falsa noite afastada pela lâmpada, a
jovem de pijama com as pernas neste momento cruzadas (o vértice do V do ventre
apertado na peça de baixo do pijama que se marca na pele macia da parte de
dentro da coxa), não uma gravura, não um quadro cinza de Hopper, um interior
velado de Veermer, um quarto torturado de Goya, porém uma pessoa real, uma
mulher viva a respirar no ritmo do planeta em sua rota de mínimas alterações ao
longo de séculos empoeirados. Corintha vê que também há poeira no tampo
arranhado da mesa.
17
Retomaram o trabalho, o homem que dita, metódico, monocórdio
mesmo, e a moça que bate, com dedos com um pouco mais de convicção sobre as
teclas com as letras gravadas, gafanhotos agora acordados pelo seu toque de
unha e carne, toc, toc-toc-toc, toc-toc-toc – irregular e irritante para vizinhos
e, talvez. Para algum mendigo que queira dormir na calçada, após pedir
permissão para acatar as mangas caídas no quintal.
33
Há tantos pequenos mistérios em torno de uma vida sem
mistério algum, numa janela aberta para a curiosidade, quando ela se abre, é
claro, sem cortinas para a visão de rotinas suaves ou agitadas, tensas ou
calmas, das mulheres sozinhas e das casadas, que se tocam e não se toca, leem
livros e leem revistas coloridas às vezes trazidas de consultórios, dobradas
nas bolsas.
40
“As cortinas que comprou para o apartamento da amiga, ela
não trouxe porque achou que arrastá-las seria deselegante. E se não é
mesquinha, ela é, sem dúvida, econômica – e nada paranoica com a intimidade
desvelada. ‘Cortinas podem esperar’, talvez formule, para si, numa reflexão
despojada e despreocupada com a ausência do pano que velaria a ocasional
transparência dos pijamas curtos e dos decotes confortáveis (uma moça nunca se
livra de olhares, certo? Ela é focada pelos olhares masculinos, e examinada,
avaliada, analisada às vezes em segundos, quando é bonita e passa no meio de
homens desocupados que fixam a atenção nas pernas, na bunda, nos seios
adivinhados e no seu rosto que se mantém impassível ou que endurece um pouco,
quem sabe, na falsa expressão ausente de quem espera não ser perceptível, num
cerrar de maxilares ou num mais tenso “olhar para frente” o ponto para além dos
pesados olhares “latinos” - conforme localizam as revistas para mulheres talvez
feitas por homens que não se imaginam na condição de fêmeas estudadas,
reavaliadas, eles, queiram ou não queiram, fazendo revistas para machos que
olham moças de alto a baixo etc).
46-47
“Você está obviamente mais cansada do que a borboleta humana
que o louva-a Deus traz para dentro da teia de enganos de quem se perde pelos
olhos.”
Ele disse isso mesmo – ou ela imaginou? Foi um pedaço do
livro ditado que ficou errando na sua cabeça, ou foi, de fato, dirigido a
Corintha, uma frase torneada como são as frases mais coloquiais de Methódio
Guerreiro?
48
...os cegos envelhecem mais lentamente, uma vez que, pelo
menos, não estão cercados da própria imagem nos espelhos, não podem acompanhar
o trabalho dos anos no rosto, no corpo que só tateiam e sentem por dentro. A
velhice é, para ele, também uma dimensão obtida principalmente do “externo” que
inclui os reflexos, as fotografias, as estranhezas de ver a si próprio como o
outro nos vê (estava brincando? Não, não estava brincando; sua expressão era
séria e melancólica, na face parada).
65
...minha mãe dizia que eu era o único filho médium que ela
tivera, numa família de católicos (ela morreu convertida à religião dos
espíritos, com aquela cara de bebum de Allan Kardec olhando das capas de livros
de distribuição gratuita nos Centros apolíticos, fios, juntando gente cada vez
mais fraca pela crença da purgação de crimes através das vidas sucessivas que
levavam um Lênin a reencarnar como Eva Perón, para de novo viver o destino de
múmia insepulta).
76
Ela gostava de escrever com a numeração romana das partes
divididas. Dizia que havia lido livros assim, toda a vida, e que isso dava um
agradável “ar seguro, de mostrador de relógio antigo” aos capítulos sucessivos,
com começo, meio e fim, nessa ordem, faz favor.
83
...um livro que é como todos os livros: uma ilha de solidão
suspensa da armadilha de solidão da vida.
83
(...) Um livro é um objeto diferente dos demais: é só papel,
porém só de plátanos muito mais tarde transformadas nas florestas nas florestas
abstratas do livro de papel que ultrapassa os bosques da tarde, da noite
mergulhada num livro pleno de sol, na biblioteca fechada de Corintha:
Preciso organizar anotações que estão metidas em todos os
livros da minha pequena biblioteca particular, (...)
84
Esta noite, Corintha leu durante duas longas horas. Talvez
seja daquelas que se sentem obrigadas a terminar um livro, a ir “até o fim”,
simplesmente porque “começaram”.
85
...e ele também comenta, agora, sobre coisas inesperadas,
fala das rosas do jardim da frente e lhe presenteou com alguns frutos da
estação, para que ela os levasse para casa (“são tantos que alguns irão
apodrecer, ficarão passados, estragados”).
96-97
...o apartamento está fechado, vazio de novo, “PARA ALUGAR”
mais uma vez, nem bem acabara de chegar anova inquilina que partiu, como um
fantasma, levando móveis, seus quadros, seus tapetes e seus livros esvaziados
da mágica da ponte de palavras num vão de pombos pousados sobre a caixa de
cimento do ar-condicionado, tampada com papelão (vi quando fazia esse
improviso, com tesoura e fita adesiva nas mãos). Agora, o apartamento é uma
janela fechada, um “não” de poeira e vidro corrido para baixo, uma leitura
interrompida de atos, gestos, decisões mudas sobre pequenos assuntos que
escapam do observador afastado e próximo, que conhece os ritmos, as rotinas
desimportantes da casa de uma desconhecida que faz falta, ou que voou como os
pássaros, sumiu do quadrado do prédio vizinho agora deserto do que me
interessava nele, não a parede, nem uma janela iluminada, qualquer janela, mas
aquela pela qual vai se formando a onda de ternura curiosa, (...).
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