segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Trechos do livro Aos Olhos da Multidão ou Fama e Anonimato, de Gay Talese

capa horrível da primeira edição que foi publicado no Brasil

- Na luta com Liston, os cronistas esportivos notaram e disseram que eu parecia estar com medo. Mas não era isso. Não posso olhar nenhum lutador de frente porque... bem, porque vamos lutar, o que não é uma coisa simpática, e porque... bem, uma vez olhei de frente para um lutador. Foi há muito tempo. Devia ser amador, naquele tempo. E quando o fitei, vi que tinha uma fisionomia tão simpática... e então ele olhou para mim e sorriu... e eu correspondi ao sorriso! Foi estranho, muito estranho. Quando um sujeitos olha para outro e sorri assim, acho que não devem lutar. Não me recordo do que aconteceu naquela luta e nem me lembro do nome do sujeito. Só que desde então nunca mais olhei de frente outro lutador. [sobre Patterson] p.59

"Escolho não ser um homem comum... é meu direito ser fora do comum, se puder... Espero a oportunidade, não a segurança... Quero assumir o risco calculado, sonhar e construir, falhar e vencer... recuso trocar incentivo por uma dádiva... prefiro os desafios da vida à existência, o êxtase da realização à calma viciada da utopia...". [sobre Peter O'Toole] p.121

- Em tempos de injustiça, o lugar do homem honesto é a prisão. - Harold Humes [sobre Paris Review] p.152

"O dia inteiro, enquanto seus colegas correm de um lado para outro, em busca do momento presente, Whitman fica tranquilamente sentado à sua mesa, tomando chá, mergulhado no seu estranho mundo de semimortos, semivivos, naquele recinto imenso chamado redação". [sobre Alden Whitman] p.199

Texto completo À Procura de Hemingway (sobre a Paris Review)

"Ernest Hemingway adorou ler as notícias dos jornais referentes a sua morte num desastre de avião na África. Mandou colar os recortes num álbum e alegava iniciar todos os dias com um "ritual matutino de champanha gelado e duas páginas de obituário". Elmer Davis foi duas vezes erroneamente apontado como vítima de catástrofes e embora confessasse que "sair vivo depois de ser dado como morto é um indizível imposição aos amigos", negou o boato e foi "em geral mais acreditado do que é o caso quando se têm que contradizer algo dito a seu respeito nos jornais".
Alguns jornalistas, não confiando talvez nos colegas, escreveram seus próprios obituários antecipados e discretamente os introduziram no necrotério, à espera do momento propício. [no texto sobre Alden Whitman] p.201

Quando Whitman foi levado para o Knickerbocker Hospital em Nova York, um repórter foi designado para "atualizar a sua biografia". Whitman, depois que se recuperou, nunca viu seu obituário antecipado, nem espera vê-lo, mas imagina que tenha uns sete ou oito parágrafos de extensão, devendo começar mais ou menos assim:

"Alden Whitman, membro da equipe do New York Times, que escreveu os obituários de várias personalidades mundiais, morreu subitamente ontem à noite em sua residência na Rua 116 Oeste, de ataque cardíaco. Estava co cinquenta e um anos de idade..."

Será muito concreto e fácil de verificar e registrará que nasceu a 27 de outubro de 1913 em Nova Scotia, sendo levado para Bridgeport pelos pais dois anos mais tarde; que se casou duas vezes, tendo dois filhos do primeiro casamento, foi membro ativo do Sindicato dos Jornalistas de Nova York. Em 1956, entre outros colegas, foi integado pelo Senador James O. Eastland sobre suas atividades esquerdistas. O necrológio terminará talvez com uma relação das escolas que frequentou, mas não mencionará que durante os anos elementares saltou dois anos (para alegria da mão, professora; o feliz acontecido colocou-a em ótima posição junto à diretora da escola); dará uma relação dos locais onde esteve empregado, mas não dirá que em 1935 quebraram-lhe todos os dentes, nem que em 1937 quase morreu afogado quando nadava (experiência que achou sumamente agradável), nem que em 1940 esteve a ponto de ser esmagado por um parapeito que ruiu; que em 1949 perdeu o controle do automóvel e derrapou até à beirada de um abismo, numa montanha do COlorado; nem que em 1965, após sobreviver a uma trombose das coronárias, repetiu o que vinha dizendo quase a vida inteira: Deus não existe, não temo a morte porque não há Deus, não haverá Dia do Juízo". [sobre Alden Whitman] p.203

... e permanecer por breve tempo...
depois partir para outra cidade, outra ponte...
ligando tudo, menos suas vidas. [parte 2, sobre a ponte] p.307

- Não lamento nada do que fiz, Jay. Só lamento o que não fiz. [parte 3, sobre Nova Iorque] p.391

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

À Procura de Hemingway - Gay Talese

O texto tem cerca de 12 páginas no Word. Quem tiver interessado(a) em receber o arquivo em PDF, mande email para paty.lavir@gmail.com com o assunto "PDF Gay Talese". Ou leia na íntegra aqui:


Lembro-me muito bem da minha primeira impressão de Hemingway, naquela tarde. Era um rapaz de vinte e três anos, extraordinariamente bem apessoado. Foi pouco depois da época em que todo mundo tinha vinte e seis anos. Houve o período dos vinte e seis. Nos dois ou três anos subsequentes, todos os rapazes tinham vinte e seis anos, a idade certa, aparentemente, para aquele tempo e lugar.
Gertrude Stein

Página do manuscrito Goodbye Columbus de Philip Roth,
publicado no número 20 da Paris Review
(Autumn-Winter, 1958-1959).

No início da década de cinquenta, uma nova geração de jovens expatriados americanos completou em Paris vinte e seis anos. Mas já não eram os Rapazes Tristes, nem os Perdidos. Eram os espirituosos e irreverentes filhos de uma nação vencedora e, embora a maioria se originasse de pais abastados e se tivesse diplomado em Harvard ou Yale, pareciam ter grande prazer em fingir-se de pobres, fugir aos credores, talvez por ser uma espécie de desafio, porque isso os distinguia dos turistas americanos a quem desprezavam, e também por ser um meio de caçoar dos franceses, que os desprezavam. Contudo, viviam em alegre miséria na Rive Gauche durante dois ou três anos, entre prostitutas, músicos de jazz e poetas pederastas, envolvendo-se com gente trágica e doida, inclusive um violento pintor espanhol que certo dia abriu uma veia da perna, terminando seu retrato derradeiro com o próprio sangue.

Em julho desciam a Pamplona para correr dos touros e ao regressar jogavam tênis com Irwin Shaw em Saint-Cloud, numa quadra magnífica, dominando Paris. E ao atirarem a bola para servir, viam diante dos olhos a cidade inteira: a Torre Eiffel, o Sacré-Coeur, a Ópera, e ao longe as torres de Notre Dame. Irwin Shaw achava-os divertidos, chamando-os “Rapazes Altos”.

O mais alto de odos, 1,90m, era George Ames Plimpton, rápido e gracioso jogador de tênis, de pernas compridas e magras, cabeça pequena, brilhantes olhos azuis, nariz delicado, de ponta fina. Viera a Paris em 1952 com a idade de vinte e seis anos porque vários dos outros americanos altos e jovens – alguns eram baixos e selvagens – estavam publicando uma revista literária que receberia o nome de Paris Review, sob protestos de um dos membros da equipe, um poeta que queria batizá-la de Druid’s Home Companion e que ela fosse impressa em casca de bétula, George Plimpton foi designado para editor-chefe e breve era visto caminhando pelas ruas de Paris, uma longa écharpe de lã no pescoço, às vezes uma capa negra aos ombros, lembrando a famosa litogravura de Tolouse Lautrec por Aristide Bruant, o brilhanteliterato do século XIX.

Embora grande parte da redação da Paris Review fosse feita nos cafés de rua, enquanto os editores aguardavam a sua vez na máquina de jogo automático, a revista obteve muito sucesso porque os rapazes tinham talento, dinheiro e gosto e evitavam usar vocábulos típicos de revistinhas, como “zeitgeist” e “dicotômico”, e não publicavam críticas herméticas sobre Melville e Kafka, preferindo poesia e ficção de jovens escritores talentosos e ainda pouco conhecidos. Iniciaram também uma excelente série de entrevistas com autores famosos – que os convidavam a almoçar, apresentavam-nos a atrizes, dramaturgos e produtores e depois todos mundo convidava todo mundo para festas, e as festas eram infindáveis. Não terminaram até hoje, embora dez anos se tenham passado, Paris não seja mais cenário e os Rapazes Altos estejam com trinta e seis anos.

Vivem agora em nova York e a maioria das festas acontece no grande apartamento de solteiro de George Plimpton, na Rua Setenta e Dois, dando para o East River, e que é também o quartel-general do que Elaine Dundy chama de “Grupo Literário de Qualidade”, ou o que Candida Donadio, a agente, classifica de a “Turma da Paris Review”. O apartamento de Plimpton é hoje o mais movimentado salão literário de Nova York – o último local onde, permanecendo na mesma sala em qualquer noite da semana, é possível encontrar James Jones, William Styron, Irwin Shaw, algumas bonecas para decorar o ambiente, Norman Mailer, Philip Roth, Lillian Hellmann, um tocador de bongo, Harold L. Humes, Jack Gelber, Sadruddin Aga Khan, Terry Southern, Blair Fuller, o elenco de Beyond the Fringe, Tom Keogh, William Pène du Bois, Bee Whistler Dabney (descendente da mãe de Whistler), Robert Silvers e um zangado veterano da invasão da Baía dos Porcos, uma coelhinha aposentada do Playboy Club, John P.C. Train, Joe Fox, John Phillips Marquand, a secretária de Robert W. Dowling, Peter Duchin, Gene Andrewski, Jean vanden Heuvel, o antigo treinador de boxe de Ernest Hemingway, Frederick Seidel, Thomas H. Guinzburg, David Amram, um barman do centro da cidade, Barbara Epstein, Jill Fox, um distribuidor local de entorpecentes, Piedy Gimbel, Dwight MacDonald, Bill Cole, Jules Feffer. E nesta cena, numa noite de inverno, penetrou uma velha amiga de George Plimpton: Jacqueline Kennedy.

- Jackie! – exclamou George, ao abrir a porta e dar com a Primeira-Dama, acompanhada da irmã e do cunhado, os Radziwills. A Sra. Kennedy, sorrindo amplamente, entre dois cintilantes brincos, estendeu a mão a George, a quem conhece desde os tempos de infância, e conversaram alguns minutos no hall, enquanto George a ajudava a despir o casaco. Depois, espreitando para o quarto e reparando numa pilha de sobretudos mais alta que um Volkswagen, a Sra. Kennedy falou, numa voz suave, cheia de simpatia:

- Oh George! A sua cama!

George deu de ombros e escoltou-os pelo hall, descendo três degraus até a sala enfumaçada.
- Olhe, - disse uma boneca, a um canto – lá está a irmã de Lee Radziwill!

George apresentou primeiro Ved Mehta, o escritor indiano, à Sra. Kennedy, depois esgueirou-se habilmente com ela por Norman Mailer, seguindo em direção a William Styron.

- Olá, Bill – disse ela, apertando-lhe a mão. – É um prazer vê-lo. Conversando com Styron e Cass Canfield, a Sra. Kennedy ficou de costas para Sandra Hochman, poetisa de Greenwich Village, loura oxigenada, vestindo um grosso suéter de lã e calças de esqui parcialmente abertas.

- Creio que estou um pouco déshabillée – murmurou a Srta. Hochman a um amigo, com sinal de cabeça para o belo terninho em brocado branco da Sra. Kennedy.

- Tolice – disse o amigo, jogando cinza de cigarro no tapete.

E para falar a verdade é preciso dizer que nenhuma das setenta pessoas presentes na sala achou que os trajes de Sandra Hochman contrastassem de maneira desagradável com os da Primeira-Dama; de fato, alguns nem a notaram, e houve quem a visse, sem a reconhecer.

- Ora, - falou, alguém espreitando através a fumaça em direção ao complicado penteado da Sra. Kennedy – aquilo é moda este ano, não é? E aquela garota quase acertou.

Enquanto a Sra. Kennedy conversava a um canto, a Princesa Radziwill batia um papo com Bee Whistler Dabney, pouco adiante, e o Príncipe Radziwill permanecia sozinho junto ao piano de cauda, cantarolando baixinho, como faz com frequência em reuniões. Em Washington, é conhecido como um grande cantarolador.

Quinze minutos após, a Sra. Kennedy, que era aguardada num jantar oferecido por Adlai Stevenson, despediu-se de Styron e Canfield, e, acompanhada de George Plimpton, dirigiu-se aos degraus que levavam ao hall. Norman Mailer, que entretanto bebera três copos de água, estava junto aos degraus e fitou-a com fixidez quando ela passou. Jacqueline não retribuiu o olhar.

Três rápidos passos e ela desapareceu – transpôs o hall, vestiu o casaco e as longas luvas brancas, e desceu dois lances de escada até a calçada, sequida pelos Radziwills e George Plimpton.

- Vejam! – gritou uma loura, Sally Belfrage, olhando da janela da cozinha para as pessoas que entravam na limusine. – Lá está George! E veja que carro!

- Que é que há de extraordinário no carro? – perguntou alguém. – É apenas um Cadillac.

- Sim, mas é preto e não tem enfeites cromados.

Sally Belfrage viu o grande veículo, apontando na direção de um outro mundo, deslizar macio para longe, mas na sala a festa continuava mais animada que nunca, e quase ninguém notou que o anfitrião desaparecera. Mas havia bebida e bastava lançar um olhar às fotos das paredes para sentir a presença de George Plimpton. Uma fotografia mostra-o toureando pequenos touros na Espanha, com Hemingway. Outra surpreendeu-o bebendo cerveja com os “Jovens Altos” num café parisiense. Outras exibem-no como tenente, marchando com um pelotão pelas ruas de Roma. Ou como tenista do King’s College, lutador amador, sparing para Archie Moore no Ginásio Stillman, ocasião em que o cheiro a ranço do local foi temporariamente substituído pelo perfume a almíscar do El Morocco e os aplausos dos amigos de Plimpton quando ele conseguiu um golpe certeiro, rapidamente transformado num “Ohhhhhhhh” quando Archie Moore rebateu com um soco que quebrou em parte a cartilagem do nariz de Plimpton, fazendo-o sangrar e levando Miles Davis a perguntar depois:

- Archie, esse sangue nas suas luvas é negro ou branco?

Ao que um dos amigos de Archie replicou: - Senhor, isto é sangue azul.

Na parede vê-se ainda um rebab, instrumento de uma corda, feito de couro de bode, e que os beduínos lhe ofereceram antes que ele fizesse um pequeno papel em Lawrence of Arabia, durante uma tempestade de areia. E sobre o piano de cauda – ele toca bastante bem para ter conquistado um terceiro prêmio, na Noite dos Amadores, no Teatro Apolo, cerca de dois anos passados, na Harlem – vê-se um coco que lhe foi enviado por uma nadadora que ele conheceu em Palm Beach, e também a fotografia de outra jovem, Vali, existencialista de cabelos cor de laranja, conhecida de todas as concierges na Rive Gauche como la bête; e também um bastão de basebol, que Plimpton ocasionalmente atira do lado oposto do living, a uma poltrona baixinha, gorda e acolchoada, usando o mesmo desabafo que quando praticava contra Willie Mays ao pesquisar para seu livro Out of My League, sobre os sentimentos de um amador entre profissionais – e que, aliás, é uma chave não só para George Ames Plimpton, como também para vários outros da Paris Review.

Vários deles vivem obcecados pelo desejo de saber como viver a outra metade. Assim travam amizade com as figuras mais interessantes entre os excêntricos, evitamos chatos de Wall Street e mergulham no mundo dos traficantes, pederastas, boxadores e aventureiros, em busca de emoções e literatura, influenciados talvez por aquela gloriosa geração de motoristas de ambulância que os precedeu em Paris, aos vinte e seis anos.